Caso você não tenha acessado a internet nos últimos dias pode ser que ainda não saiba da última bomba que acabou de estourar e pode acabar com as nossas regalias: a neutralidade da rede foi derrubada nos Estados Unidos.
Na prática, agora as operadoras de internet poderão diferenciar preços e serviços da maneira que desejarem. Por exemplo, a Comcast, maior provedora do país poderá entregar menos velocidade (ou até mesmo bloquear) o acesso à Netflix, já que ela é dona de uma parte do Hulu, um serviço de streaming concorrente.
Mas você não assiste muito streaming então acha que está tranquilo? Ok, mas e se a medida impactasse também as redes sociais como Instagram e Facebook? Ficou preocupado agora? Pois é. Agora as provedoras poderão cobrar a mais dos servidores destas empresas já que elas demandam um tráfego gigantesco de dados e aquele hoax de Facebook cobrar mensalidade parece que nunca foi tão verdadeiro.
Assim é possível, em teoria, que uma operadora de celular tenha, por exemplo, o pacote mensagens (sms, Whatsapp, Messenger e Telegram) por US$ 9,99, pacote redes sociais (Facebook, Instagram, Twitter e Snapchat) por US$ 19,99; pacote e-mail (Gmail, Outlook, Yahoo Mail) por US$ 14,99; pacote streaming (YouTube, Netflix, Spotify, Amazon Video) por US$ 29,99, etc.
Mas os problemas vão além das aplicações finais, imoactando em algo mais profundo. E o Bitcoin, aquela moedinha virtual que está revolucionando o modo como fazemos compras e pagamentos na internet pode ser um dos maiores prejudicados. Será que ele está com os dias contados também?
Duvida que isso possa acontecer na prática? Lamento te dizer isso, mas você é muito ingênuo, pois essas coisas já aconteceram. Olha só: Em 2011 a provedora Verizon proibiu o acesso de seus usuários a Google Wallet, sistema de pagamentos do Google, pois eles estavam desenvolvendo o seu próprio sistema rápido de pagar contas. Já em 2014 a Comcast obrigou a Netflix a pagar um valor extra para que seu serviço pudesse ter velocidade total a quem acessasse o streaming. E antes disso, em 2007, a mesma Comcast já havia limitado a velocidade de quem usava torrents.
Os abusos tiveram de cessar quando Obama, em 2015, conseguiu impor a neutralidade na rede. E foi justamente essa neutralidade que foi derrubada ontem. E agora, os especialistas estão todos preocupados com o fato de que as sanções possam começar o mais rápido possível e não só às aplicações e serviços.
Quanto ao bitcoin e às demas digitais a coisa pode complicar também. Veja esse exemplo:
Para que você possa comprar qualquer criptomoeda hoje você precisa acessar o site de uma exchange e lá efetuar a negociação. Exchanges são lojas online que vendem bitcoins, ethereuns e qualquer outra moeda alternativa. Pois bem, digamos que a Comcast detém o monopólio de internet em determinada região (o que não é raro). Daí você vai lá comprar moeda na exchange A e descobre que as taxas aumentaram significativamente da noite para o dia. O motivo? A prestadora de internet passou a aplicar taxas de tráfego mais pesadas à sua transmissão de dados, tudo porque ela quer que você compre na exchange B, que por algum motivo específico é sua protegida.
Agora que a Internet não é mais um território livre as empresas poderão decidir qual o tráfego de dados a ser priorizado.
Outro caso rápido: Todos sabemos que os bancos, além de uma campanha de difamação forte, têm feito também um pesado lobby quanto a uma possível proibição/taxação/regulamentação dos valores digitais.
Assim, quem duvida que as insituições financeiras não possam pagar uma boa soma para que os serviços de internet restrinjam, dificultem ou IMPEÇAM o acesso a tudo o que envolve bitcoin e relacionados? Agora, se elas não quiserem mais determinado assunto ou serviço trafegando por sua rede é pefeitamente possível amparado por lei a sua recusa em entregá-los aos usuários.
E não pense que "aaaaah, mas a internet é imbloqueável e a gente sempre vai dar um jeito de burlar e tal, anonymous tá aí fazendo altas ameaças e nunca cumprindo nada..." ou vai dizer que você já esqueceu como é fácil bloquear um site ou serviço? Para atestar isso basta lembrar que só nesse ano o Brasil já ficou sem Whatsapp umas 5x porque determinado juiz de uma cidadezinha que ninguém conhece resolveu mandar bloqueá-lo. Bloquear o acesso de uma região ou o acesso a conteúdo específico é simples demais.
E as coisas podem ser ainda piores, caso as operadoras resolvam mexer não só no comércio de moedas, mas também na rede P2P, que está por trás de todo o ecossistema das criptomoedas.
Explicando rapidamente: P2P são redes onde não existe um servidor central. Todos os usuários são hosts e servidores ao mesmo tempo. É assim que funciona o torrent (todo mundo baixa e envia arquivos para todo mundo) e a Blockchain, a rede por trás do bitcoin. Na blockchain todos os mineradores são ao mesmo tempo potenciais validadores de operações, não existe alguém que centralize essa operação. E a blockchain depende exatamente disso para que a rede seja segura e as negociações não sejam fraudulentas: cada uma delas é veridicada por dezenas de pessoas. Tudo através de uma rede descentralizada P2P, a forma mais irrastreável possível.
De acordo com o professor Emin Gün Sirer, da universidade de Cornell, as aplicações P2P poderão ser relegadas a um segundo plano pelas operadoras, já que não estão entre as operações mais usadas na internet e a sua manutenção talvez não seja a maior das preocupações. Ela será extinta? Possivelmente não, mas mantê-la poderá custar mais, e quem é que iria arcar com estes custos? Se você respondeu "os usuários" você acertou.
E mesmo que as operadoras decidam continuar operando com o Bitcoin sem maiores empecilhos, pode ter certeza que, no mínimo, estaremos sujeitos ao risco de que nossas operações possam ser priorizadas. Se você for enviar 0.100 bitcoins, por exemplo, poderia entrar numa fila enquanto que o fulano que transferiu 3 BTC entrou numa outra, uma fila expressa.
Essa questão, aliás, sempre foi um dos maiores temores quanto ao fim da neutralidade: Quem pagar mais terá mais. Mais velocidade, mais prioridade, mais banda, mais armazenamento, mais upload, etc. Criar-se-á uma hierarquia na internet, e se você não quiser pagar... só lamento.
E uma outra ideia interessante levantada pelo site The Next Web: agora os provedores poderão decidir emitir suas próprias moedas e então priorizá-las, assim como aconteceu com aquele impasse do Google Wallet que falei no início do texto. Imagine uma Comcoin, por exemplo. Com ela um assinante poderia pagar seu novo pacote de internet "Platinum" (que ofereceria 130 sites + Facebook e YouTube ilimitado, além da oferta de TV premium da Comcast pelo baixíssimo preço de apenas) US$ 229 por mês ou US$ 199, se pago com a Comcoin.
E o Brasil nessa história toda? Bom, a legislação até agora é restrita aos EUA, mas mesmo que a medida não possa proibir as transações ocorridas em outros países, ela oferece um impulso e tanto para quem quiser seguir essa linha. Gostando ou não, os Estados Unidos são o país mais influente na política global. Sendo o maior importador de produtos estrangeiros do mundo, a nação de Donald Trump tem um poder de barganha ilimitado seja qual for o país com o que ele esteja negociando.
Nem mesmo a China defenderia o bitcoin se isto arriscasse perder um mercado de mais de 300 milhões de endinheirados consumidores.
Enquanto isso aqui no Brasil ainda estamos em uma situação tranquila. Embora tenhamos passado, e vencido (por enquanto), a batalha contra o limite de consumo de dados, estamos amparados pelo marco civíl da internet, um verdadeiro "marco" na política digital e que nos confere uma certa segurança. Mas claro, nada que não possa ser derrubado caso haja o empenho dos políticos. E, segundo a Folha de São Paulo, a pressão das empresas que operam no Brasil começará em breve.
Mas é isso aí mesmo, viva o estado mínimo não-intervencionista.
Resta torcer para que a medida seja revertida pelo congresso americano, já que agora ela precisa ser sancionada para passar a valer e pelo que se sabe, a maioria dos congressistas não dá suporte à causa.
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