30 anos se passaram desde o desastre acontecido com o vazamento de césio-137 em Goiás, mas o assunto, que deveria ser ensinado nas escolas para que não fosse esquecido e nunca mais se repetisse, é cada vez menos lembrado, sendo desconhecido pelas gerações mais novas.
E ne você é um daqueles que nunca havia ouvido falar, prepare-se para conhecer uma triste história causada por um misto de negligência, desinformação e ignorância que causou a morte de dezenas de pessoas e deixa marcas até hoje.
Muitos não sabem, mas o Brasil também teve sua própria versão de Chernobil: Confira a partir de agora como 19 gramas de um pózinho fluorescente foram responsáveis pelo maior acidente nuclear em uma área urbana do planeta. O tema foi sugerido pelo leitor Márcio Bohrer.
O que é o césio-137
O caso começa com uma clínica médica abandonada na cidade de Goiânia, capital do estado de Goiás. Mas antes de abordarmos, de fato, o que aconteceu naquelas duas semanas, primeiramente precisamos entender como o Césio-137 foi parar lá.
Pode não parecer em um primeiro momento, mas césio-137 e medicina tem tudo a ver, principalmente quando falamos de oncologia, o ramo responsável por estudar, tratar e combater todos os tipos de cancêres. Como você já deve ter ouvido falar, entre os tratamentos para os tumores está a radioterapia, especialidade que ataca a doença através da emissão de radiação controlada diretamente nas células cancerígenas. E entre os elementos que têm sua radiação usada para este fim está justamente o césio-137, além do rádio-226 e o cobalto-60.
E antes que você se pergunte por que o césio-137 é radioativo e o que é o tal césio-137, eu explico. Césio-137 é um isótopo do elemento químico Césio. Isótopos são variações de um mesmo elemento que diferem entre si no número de prótons. Por exemplo: O elemento Césio tem 55 prótons e isso é o que faz ele ser um Césio; se tivesse 54 ele seria o Xenônio e se tivesse 56 seria o Boro, por exemplo. Mas além de ter um elemento ter os prótons ele tem outras coisas que o definem, como o número de nêutrons.
Um Césio com 57 nêutrons é um isótopo, já um césio com 58 nêutrons será outro isótopo, e assim por diante. O césio tem 40 isótopos conhecidos, o suficiente para fazer ele ser conhecido como o elemento com maior número de isótopos, junto do Bário e do Mercúrio. Pois bem, um destes isótopos é justamente o césio-137 que tem esse nome devido à soma dos seus 55 prótons (já que ele é um césio) e 82 nêutrons.
E aqui vem o pulo do gato: diferentemente do césio-133, que é o único isótopo estável do césio, o césio-137 é um elemento instável. Isso significa que o núcleo do átomo irá tentar se estabilizar. E como ele faz isso? Liberando aqueles nêutrons excedentes em forma de energia afim de reduzir sua massa. Essa energia liberada é a popular radiação que, no caso do césio-137, propaga-se em forma de raios Gama.
Mas tudo isso foi só para você entender que radiação é uma coisa normal na natureza (produzida pelo nosso corpo, inclusive) e não é, necessariamente, perigosa. O próprio césio-137 é seguro contanto que não entre em contato direto com a sua pele ou que você não seja exposto à sua radiação por tempo excessivo e sem as medidas de segurança sendo rigorosamente respeitadas.
E essa mesma radiação que é empregada na radioterapia. Através de uma máquina isolada com chumbo o enfermo tem a parte acometida pela doença exposta à radiação e pronto. É só deixar a natureza seguir o seu curso. As células cancerígenas irão absorver a radiação emitida, maximizando o dano no tumor e minimizando o dano em tecidos vizinhos normais, já que, por se dividirem com muita frequência, as células tumorais são mais sensíveis à radiação do que as células sadias. Dessa forma a radiação interrompe a metástase e mata o tumor.
Além da medicina o Césio-137 tem diversas outras aplicações, principalmente naquilo que diz respeito à aferição. Ele é usado para calibrar equipamentos de detecção de radiação, em medidores de vazão, medidores de espessura, medidores de densidade de umidade e em dispositivos que medem a profundidade geológica de algum buraco, entre outras coisas. O césio-137 é usado até mesmo para datar em vinhos e evitar falsificações.
O isótopo só não tem uma aplicação mais ampla porque é quimicamente reativo e difícil de manusear. Além disso os sais de césio são solúveis em água, o que pode fazer com que o menor vazamento acabe incorrendo em uma contaminação de proporções enormes se atingir um manancial ou fonte de abastecimento.
O caso de Goiânia
Voltando ao caso, tudo poderia ter sido evitado se o Instituto Goiano de Radioterapia tivesse tomado as medidas de segurança adequadas quando foi desativada em 1985 e ter dado um fim adequado aos equipamentos. Na verdade, eles quase conseguiram, só que uma máquina de radioterapia ficou para trás.
Como uma tragédia deste tamanho geralmente não se dá por apenas um erro isolado, a segunda falha ficou por conta de dois catadores de recicláveis que 2 anos depois, mais precisamente em 13 de setembro de 1987, invadiram a propriedade abandonada onde a máquina se encontrava. Procurando algo que pudessem vender eles encontram a máquina e acham que ela pode valer uma boa grana. Após levá-la para a casa de um deles os rapazes começaram a procurar o melhor comprador para o material.
Assim eles se tornaram as primeiras pessoas a ter contato com a cápsula onde estava guardada o elemento químico e as primeiras vítimas. No dia seguinte ao manuseio eles já apresentavam náuseas, diarreia, tonturas e vômito.
Mas até aí tudo bem já que eles não haviam entrado em contato direto com o elemento. Note que os sintomas apresentados são os mesmos sintomas que os novos pacientes de radioterapia podem experimentar no tratamento de câncer, ou seja, eles foram afetados apenas pela radiação emitida. Mas nem todo mundo sairia ileso dessa história.
Cinco dias depois, 18 de setembro, eles encontraram o dono de um ferro-velho que compraria os mais de 300 quilos de sucata. Após muita marretada, dois de seus funcionários finalmente conseguiram ir fundo nos espólios da máquina e retirar uma pequena cápsula que continha 19 gramas de um pózinho que brilhava no escuro. Ao ver aquele pó ganhar ganhar um tom azulado quando anoitecia, o dono do ferro-velho pensa se tratar de algo de grande valor e resolve levá-lo para sua casa onde ficaria mais seguro.
Como naquela época não tinha internet ou Nintendo Wii o pózinho mágico virou a sensação local e muitas pessoas começaram a ir até a casa de Devair, dono do ferro-velho, só para vê-lo em ação. Não muito depois todos estavam apresentando os mesmos sintomas que os dois catadores do início da história, porém ninguém suspeitava de nada ainda.
O pior de tudo vem agora: O irmão do dono do ferro-velho estava entre os visitantes que ficaram deslumbrados com o césio-137 e, em 24 de setembro, leva um pouco do material para casa. A intenção era agradar sua filha Leide, de 6 anos, com aquele brinquedo peculiar. Obviamente que ela adorou a novidade e manuseou o mesmo por alguns minutos até que sua mãe chama-a para comer. Assim, com as mãos contaminadas pela substância ela ingere um ovo cozido.Mais alguns dias foram necessários para que, em 28 de setembro, alguém percebesse que todos aqueles casos estranhos de pessoas adoecendo uma atrás da outra após entrar em contato com o material brilhante não poderia se tratar de uma simples coincidência. Coube à esposa de Devair, Maria Gabriela, levar a cápsula onde estava o césio-137 à vigilância sanitária que, após deixar o material por 2 dias sobre uma cadeira à espera de um técnico, identificou que estavam lidando com um material altamente radioativo.
Dois dias depois os técnicos da Comissão de Energia Nuclear e policiais militares começam a descontaminação da região. Mais de 112 mil pessoas formaram filas no Estádio Olímpico em Goiânia onde foram analisadas em meio a tendas do exército e pessoas com "roupas de astronauta". Destes, mais de uma centena delas continha níveis críticos de césio-137 no organismo.
Após terem sido feitos os testes de níveis de radiação na população, aqueles que tiveram contato direto com o material foram imediatamente transferidas para o Rio de Janeiro onde passariam a ser tratadas no Hospital da Marinha. Um dos encarregados em medir o nível de contaminação conta que pensou estar quebrado a máquina de testes já que a garotinha Leide marcou um valor de 2500 rads, unidade usada para medir radiação, quando um ser humano com uma quantidade acima do normal é de cerca de 20 rads. Com um nível de intoxicação tão grande, infelizmente, ela não teria outro destino que não o óbito, ocorrido em 23 de outubro, quase 1 mês após a ingestão de césio-137. De acordo com sua mãe, no momento do velório a menina estava com os lábios roxos e todo o entorno da boca queimado. A esposa de Devair, Maria Gabriela, morreu no dia seguinte. E as mortes não pararam por aí. Dia 27 faleceu Israel, de 20 anos, e, dia 28, Admilson, de 18 anos. Eles eram os funcionários do ferro-velho que tinham aberto a máquina há pouco mais de 1 mês e tinham encontrado o material radioativo. As vítimas foram enterradas em caixões lacrados de fibra de vidro e revestidos com chumbo, pesando mais de 700 kg cada um. Além de serem enterrados em um local do cemitério que até hoje está impossibilitado de receber "vizinho" as covas foram tapadas com centenas de quilos de concreto puro. A incerteza sobre o impacto da contaminação era tão grande na época que 11 caixões especiais chegaram a ser confeccionados. Mas nem mesmo a morte de quatro inocentes pode ser considerada a parte mais triste deste episódio. No momento a ignorância causada pela falta de informação veio à tona e populares tentaram barrar o enterro atirando nos funcionários do cemitério pedras, tijolos, madeiras e todo o tipo de coisa que pudessem encontrar. O "protesto" era contra o sepultamento dos corpos naquele local. Além das quatro mortes imediatas o Estado de Goiás admite, oficialmente, que 16 pessoas morreram até hoje em decorrência do desastre. Segundo o Ministério Público estadual esse número de mortes sobe para 66 vítimas, ou, mais de 80 de acordo com associações de amparo às vítimas. Além das vítimas diretas do césio-137 os familiares lembram das mortes correlatas, principalmente de Devair e Ernesto, pai de Leide, que morreram anos depois. Ambos entraram em depressão após perder os entes e "desistiram" de viver. O primeiro deles se afundou na bebida e morreu de cirrose hepática enquanto que o outro achou companhia no cigarro, chegando a fumar até 6 maços de cigarro por dia. A causa de sua morte foi enfisema pulmonar. Entre as vítimas não fatais mais graves estão os catadores dos quais um deles teve o antebraço amputado na época do acidente e o outro corre o risco, ainda hoje, de ter de amputar o pé por conta das queimaduras provocadas pelo período de longa exposição à radiação. Isso sem contar os diversos dedos, queimaduras, enxertos, etc. que muitas pessoas precisaram fazer. Mas segundo estes sobreviventes o pior de tudo foi o estigma e preconceito pelos quais eles passaram na época da tragédia. Hoje todos os órgãos e especialistas afirmam que as pessoas podem ficar tranquilas.Vítimas
Como estão as coisas hoje
Riscos
Tudo aquilo que foi tocado ou teve a chance de ser contaminado pelo material radioativo foi colocado em caixas de concreto e foram enterrados em um depósito de lixo radioativo a alguns quilômetros de Goiânia, no Centro Regional de Ciências Nucleares (CRCN), na cidade Abadia de Goiás. A cidade que abriga os restos do acidente com césio-137 é a única do mundo que possui um símbolo nuclear na sua bandeira.
O descarte de mais de 6 mil toneladas contém desde roupas das vítimas e pedaços de asfalto até suas casas e animais de estimação que precisaram ser sacrificados.
O material ficará lá por cerca de 300 anos até que perca sua radioatividade ao ponto de não oferecer mais perigo à natureza. O cálculo é explicado pela meia-vida do isótopo césio-137 que é de pouco mais de 30 anos.
Funciona assim: a cada 30 anos a emissão de raios Gama, ou seja, a própria radiação, cai pela metade. Digamos que sejam colocados 1000 átomos de césio-137 em um potinho. Em 30 anos este potinho teria 500 átomos de césio-137; após outros 30 anos seriam 250; mais 30 anos e seriam 125 e assim por diante.
Como já se passaram 30 anos, um ciclo já foi completado e, segundo informações do CRCN, outros nove períodos de meia-vida serão necessários para que ele deixe de ser perigoso. Está achando bastante? Então agradeça por não usarmos Césio-135 nos processos de radioterapia, pois a meia-vida deste isótopo é de nada mais nada menos do que 2.3 milhões de anos.
Hoje cerca de 1200 pacientes entre contaminados direta, indiretamente e funcionários públicos que participaram do processo de limpeza, descontaminação, segurança e isolamento do local são tratados no Centro de Atendimento do Radioacidentado (CARA). Esse número é decorrente dos filhos e netos daquelas 129 pessoas que, originalmente, foram diagnosticadas como portadores de uma taxa de radiação acima da média ao serem medidas no Estádio Olímpico. Os cuidados do estado devem se estender até a 3ª geração das vítimas diretas. Destas pessoas, 751 recebem pensão relacionadas ao acidente com o césio-137, sendo 265 pensionistas estaduais e 416 federais (destes, 116 recebem duas pensões). A indenização recebida por eles não é reajustada há anos e tem valor inferior ao salário mínimo. Como se não fosse o bastante, os recursos para tratar dos afetados no CARA estão diminuindo com o tempo e a medicação até então abundante, agora, muitas vezes, precisa ser pleiteada por vias judiciais. Após 30 anos, segundo os médicos que acompanham as vítimas e pesquisadores da UFG - Universidade Federal de Goiás - não há nenhum caso de câncer nos atingidos pela radiação que possa ser claramente relacionado à contaminação ocorrida nos anos 80. Olhando hoje para o desastre de Goiânia, após anos do ocorrido e com um distanciamento de décadas suficiente para nos fazer separar o que é sentimento do que são de fatos, é possível concluir que algumas pessoas foram completamente negligentes com a situação. Afinal, ninguém esquece uma máquina radioativa destinada ao tratamento de câncer "sem querer" em uma clínica abandonada. Após quase 10 anos de investigações e julgamento cinco pessoas foram condenadas: 4 médicos (sendo três deles responsáveis pela clínica e o outro apenas por ser dono do prédio) e 1 físico hospitalar. A sentença foi proferida em 1996 e eles foram condenados por lesão corporal culposa e homicídio culposo (quando não há a intenção de matar ou lesionar). As penas variaram de 1 ano e 2 meses a 3 anos e 2 meses em regime aberto, posteriormente, em 1997, substituídas por prestação de serviços comunitários e depois extintas por indulto presidencial, em 1998. A desinformação e o despreparo que ficaram evidentes com a tragédia ocorrida na capital goiana trazem à tona a preocupação se o país estaria preparado para lidar com um acontecimento em proporções maiores, como a explosão de um reator em uma usina nuclear igual ao que ocorreu recentemente na Usina de Fukushima, no Japão. Por isso um dos projetos mais polêmicos depois disso tudo é o de Angra 3, a terceira usina nuclear brasileira. O medo é plenamente compreensível. Se em Goiânia tudo aconteceu por causa de 19 gramas de césio imaginemos o caso de uma explosão em Angra, onde toneladas de césio, plutônio e outros elementos seriam espalhados por aí. Segundo Chico Whitaker, da Comissão Brasileira de Justiça e Paz "É uma insanidade. Infelizmente, as lições não são aprendidas no Brasil".
Vítimas
Culpados
Política Nacional de Energia Nuclear
A história de Angra 3 é polêmica deste o seu início: começou a ser construída em 1984 - baseada em um projeto de 1970 - e após a sofrer com as dificuldades políticas e econômicas do período de transição para a democracia e com a pressão do trágico acidente nuclear de Chernobil, em 1986, a usina voltou para a gaveta. A obra só seria retomada com a chegada do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), em 2009.
O principal problema, segundo Sidney Luiz Rabello, engenheiro no setor de segurança de usinas nucleares da Cnen - Comissão Nacional de Energia Nuclear - é que "eles continuaram com o mesmo projeto da década de 1970, sem levar em consideração a possibilidade de fusão do núcleo do reator, como no acidente ocorrido em 1979, em Three Mile Island (EUA)". E se o engenheiro do Cnen disse isso, quem somos nós para discordar.
Em 2010, o engenheiro fez parte de uma equipe que analisou a obra e identificou a necessidade de atualizações nos planos originais de construção. Ele disse que o relatório dos engenheiros foi conclusivo e apontou diversas melhorias a serem feitas. Todas foram ignoradas.
No fim de 2015, as obras da usina pararam novamente. Desta vez, por causa de corrupção e lavagem de dinheiro na construção. Cinco ex-executivos da Eletronuclear e dois sócios da VW Refrigeração acabaram detidos preventivamente na Operação Pripyat, desdobramento da Operação Lava-Jato. Tornou-se público no dia anterior ao que escrevo este texto (26 de abril de 2018) mais um esquema de superfaturamento em Angra 3. O Tribunal de Contas da União bloqueou mais de meio bilhão de reais da construtora Andrade Gutierrez por conta de contratos suspeitos.
Angra 3 segue parada desde 2015, ano em que deveria entrar em operação. A previsão atual para o início das atividades é 2021. O custo já soma R$ 7 bilhões, enquanto que a previsão é que no dia da inauguração mais de R$ 17 bilhões tenham sido despejados na obra.
Mas pelo menos 1 ponto positivo pode ser tirado de tudo isso que envolve o acidente com césio-137 acontecido em Goiânia: Nas palavras do físico Araken dos Santos Werneck Rodrigues, da Universidade de Brasília: "Aquelas bombas de cobalto e cobre foram substituídas por aceleradores. Àquela época, existia o elemento radioativo emitindo constantemente a radiação. Agora, há um gerador de raio X confiável, que para de emitir quando desligado. O tratamento ficou mais eficaz. E foi o acidente com o césio que acelerou essa mudança".
E você tem mais alguma sugestão de pauta interessante assim como o leitor Márcio? Então é só deixar nos comentário.
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