Eu me lembro de, no final de 1999, comentar com meus amigos sobre um jogo fantástico que sairia para o Dreamcast, o então recém-lançado console da Sega. A internet ainda engatinhava para mim e tinha impacto limitado no mundo, por isso, as informações sobre games vinham das revistas nas bancas de jornal. Conhecimento limitado colaborava para um hype curioso, que envolvia fantasias e exageros sobre os videogames do período. E eu sempre falava empolgado desse RPG com gráficos incríveis, em que seria possível fazer de tudo: pegar ônibus, comprar refrigerante, ir ao mercado e conversar livremente com todas as pessoas no meio da rua. Era Shenmue Chapter One: Yokosuka.
Um título icônico que não foi tão bem
Criador dessa e de outras franquias famosas, o japonês Yu Suzuki não media esforços para aumentar as expectativas. Cunhou, inclusive, um nome novo para descrever o gênero em que Shenmue se encaixava: "FREE" (Full Reactive Eyes Entertainment). Ele queria dizer que se tratava de um tipo inédito de experiência, muito mais abrangente e interativo que os RPGs da época. Em certo sentido, ele estava certo: depois de lançado, Shenmue inovou com mapas grandes, diálogos totalmente falados e ambientação interessantíssima, com variações de clima e personagens que mantêm rotinas próprias. Era um avanço notável, possibilitado pelas capacidades do Dreamcast.
O enredo é centrado em Ryo, um jovem que quer vingança após ver seu pai ser assassinado. Para isso, ele busca informações sobre o paradeiro do assassino em sua vizinhança, numa jornada que envolve confrontos com gangues e aprendizado de novos golpes. De fato, é um jogo com proporções grandiosas para o início dos anos 2000, levando-se em conta que ainda não havia PlayStation 2, tampouco GTA III. Mas ele não foi bem comercialmente, e os astronômicos 70 milhões de dólares gastos em sua produção pesaram no bolso da já combalida Sega.
Entre as principais razões para o fracasso, podem-se destacar algumas: o ritmo do game, muito lento e focado em diálogos; as limitações da liberdade que se tinha - de fato, era possível comprar refrigerantes ou brinquedos em máquinas de venda, mas isso não fazia a menor diferença no seguimento do enredo; ou ainda, problemas em sua mecânica de luta e de movimentação, uma má surpresa vinda do cara que criou o importante Virtua Fighter.
Shenmue foi uma saga pensada em vários capítulos, e a ideia inicial era que eles fossem sendo cobertos aos poucos no Dreamcast. Shenmue II, por exemplo, cobriu mais partes que o primeiro, e trouxe algumas melhorias na dinâmica geral. Mas a iminente crise financeira da Sega fez com que, nos Estados Unidos, essa segunda versão saísse com exclusividade para o primeiro Xbox da Microsoft. Foi um baque para muitos fãs, mas a tristeza maior estava por vir. Depois de Shenmue II, a franquia caiu no limbo, com promessas distantes de uma volta que nunca se concretizou, e o enredo ficou inacabado.
O improvável ressurgimento
Em junho de 2015, a conferência da Sony na E3 fez a mágica acontecer. Yu Suzuki subiu ao palco para anunciar que Shenmue III seria realidade, produzido pelo Ys Net, seu novo estúdio. Isso dependeria da aceitação do público em uma campanha do Kickstarter que, felizmente, foi muito bem-sucedida, e gerou arrecadação maior do que havia sido pedido. Essa cena teve ares épicos, com as câmeras do evento capturando emoção e lágrimas entre os presentes no auditório. Estava tudo certo: Shenmue III seria lançado em 2017 para PC, via Steam, e PS4, com presentinhos especiais para os doadores.
Isso não aconteceu. A página que relata o progresso do desenvolvimento informava atraso após atraso, e a data de lançamento mudou algumas vezes. Nesse meio-tempo, em 2018, uma boa notícia: Xbox One e PlayStation 4 receberam versões em HD dos dois primeiros títulos da franquia, servindo como boa prévia para a tão aguardada terceira versão. Esta ainda causou algumas dores de cabeça, sendo a principal delas a entrada da Epic Games como nova distribuidora da versão PC, descartando a Steam, sem que os doadores pudessem receber estorno nessa plataforma.
Depois de todas essas idas e vindas, finalmente foi anunciada uma data de lançamento: 19 de novembro de 2019, mais de 18 anos após a chegada de Shenmue II. É um claro motivo para os fãs comemorarem, afinal, agora se tem mais que promessas. Será então que, depois de toda essa expectativa guardada, Shenmue III explodirá como um grande sucesso? Minha aposta é que não, e eu explico.
Uma difícil missão
Mesmo sendo um fã, preciso reconhecer que a fama da franquia está intimamente ligada à época em que ela surgiu. Nada de internet ou de redes sociais, e o máximo que tínhamos em videogames eram os limitados Nintendo 64 e PSOne. Isso fez com que os feitos do estreante Dreamcast recebessem o devido destaque, mas, se isso não se converteu em vendas naquele período, dificilmente o fará agora. Em tempos de GTA V, Red Dead Redemption II e tantos outros lançamentos que elevaram os games a padrões surpreendentes, o velho Shenmue pode figurar apenas como mais uma escolha, que dificilmente trará elementos que o destaquem entre os jogadores que não lhes reservam nenhum afeto prévio.
Neste momento, vou me permitir enxergar com os olhos de Pablo Miyazawa e Rodrigo Russano, jornalistas do IGN Brasil que tiveram a oportunidade de testar uma demonstração de Shenmue III no meio deste ano, na E3. Como entusiastas e gamers das antigas, os dois apareciam em vídeo empolgados com a oportunidade, mas, em resumo, disseram que a gameplay que experimentaram se assemelhava muito com a dos antigos títulos. Pablo, em certo ponto, afirmou que algumas coisas (gráficos, frases) eram engraçadas, mesmo quando esta não era a intenção do jogo. No fim, ambos estavam satisfeitos, mas eu não apostaria que essa seria a mesma conclusão de um público jovem, que não deve contato com o "mito" de Shenmue.
É válido lembrar, aliás, que o poder do Dreamcast possibilitou gráficos bonitos para a época, um grande diferencial. Pelos vários vídeos e fotos já disponíveis, o upgrade visual visto em Shenmue III não é suficiente para destacá-lo nesse quesito. Na verdade, Miyazawa e Russano criticaram as animações que viram, complementando que elas podem ser uma "máquina de memes". Ou seja, para os padrões atuais, a atualização nos gráficos épicos de outrora não parece suficiente, gerando resultado um tanto quanto caricato em certos aspectos.
Para além dos gráficos, a dinâmica de gameplay também importa muito, talvez até mais. A referida demonstração, segundo Miyazawa e Russano, tinha ritmo lento, mas vamos dar o benefício da dúvida: isso não é suficiente para uma avaliação definitiva. Fica apenas a expectativa de que recebamos uma experiência mais refinada que a dos primeiros games, com as atualizações que coloquem Shenmue III no patamar do que temos hoje - afinal de contas, é um produto novo, não se trata de apenas um remake.
A verdade é que, como grande fã, eu não me importaria se, em 19 de novembro, eu recebesse algo exatamente nos moldes de 2001. Minha ligação afetiva faz com que o mais importante seja voltar a ter uma experiência com a franquia, e curtir o desenrolar do enredo. Entretanto, para que faça o sucesso esperado, Shenmue III precisa conquistar um público muito mais amplo, e as pistas até agora são de que isso não será fácil, caso o estilão antigo se sobressaia. Curiosa foi uma declaração feita por Yu Suzuki, dando a entender que a terceira versão não será suficiente para encerrar a saga, que precisaria de mais uma ou duas iterações. Se for isso mesmo, meus dedos estarão cruzados, pois não quero esperar mais duas décadas. E a propósito: sobre o que escrevi, espero estar errado.
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