Muito se discute sobre a representatividade feminina nos mais diversos campos da sociedade. Até hoje, infelizmente, muitos espaços (quase todos, na verdade) são dominados por homens e as mulheres em posições de liderança, infelizmente, constituem uma exceção à regra. Hoje existem diversos programas para inclusão feminina na comunidade científica, como esse, esse, esse ou esse, só para citar alguns.
Mas se hoje a ciência é mais um destes campos dominado pelos homens, imagine você há mais de 100 anos. Mas claro que isso não quer dizer que elas não mandavam bem, que o diga Marie Curie, única pessoa a acumular prêmios Nobel em mais de uma categoria (Nobel de física, em 1903, pelo trabalho com a radioatividade, e, em 1911, Nobel de química por ter descoberto os elementos Rádio e Polônio).
Mas a discussão de gênero não é o motivo desse post e sim, prestar uma mais do que justa homenagem a algumas mulheres que enfrentaram a dificuldade imposta pela sociedade do início do século XX (se já é difícil hoje, imaginem naquela época) e mudaram o rumo da astronomia.
E para entendermos melhor essa história vamos voltar mais de 110 anos no tempo, até 1901, quando as universidades eram predominantemente masculinas. Na tradicional Harvard tudo ocorria da forma como mandava o status quo, comandada por homens e algumas poucas mulheres (desde que brancas, é claro) em uma outra classe.
Naquele ano um famoso astrônomo, chamado Edward Charles Pickering, decidiu tomar uma atitude inesperada e bastante controversa: lotar o seu laboratório de astronômas (o que deu o pontapé inicial no "Fenômeno Harem", segundo alguns sociólogos). Acreditem ou não, mas foi um dos acontecimentos mais chocantes naquele ano no campus de Harvard.
[RELATEDID][/RELATEDID]Nesta época Pickering era o diretor do Observatório do Colégio de Harvard e foi um dos responsáveis por torna-lo uma das instituições mais respeitadas na área. Além de seu escritório no observatório, Pickering tinha uma sala onde ficavam suas calculadoras, um cargo geralmente exercido por mulheres que eram as responsáveis pelos cálculos para o cientista "principal" (ou você achava que a palavra "calculadora" fora inventada com o advento das calculadoras digitais que a gente compra nos R$ 1,99?).
E que ninguém nos ouça, mas se você gosta de uma fofoca, a sala era chamada à boca miúda de Harem do Pickering, tamanha indecência da situação. Não sei de nada.
Famoso astrônomo já naquela época, ele era conhecido por ter sido o criador - em 1882 - do método espectral de classificação de estrelas, que consistia no seguinte: a luz de uma estrela atinge um prisma colocado em um telescópio. Ao passar por esse prisma a luz é amplificada e dividida em uma faixa mostrando a cor que a compõe. Para a direita vão os raios vermelhos e para o lado oposto os violetas. No meio ficam as cores deste espectro, e mais: podem ser notadas diversas linhas escuras intercalando os feixes coloridos.
E é neste momento que acontece a mágica: as Calculadoras de Harvard (como elas eram chamadas) tinham o trabalho de comparar essas linhas escuras dos espectros estelares com outras linhas escuras obtidas em um laboratório (geradas através de substâncias comuns e produzidas a partir de elementos que temos na Terra). Mas por enquanto coloque essa informação de lado. Já já vamos usá-la. Por enquanto lembre-se apenas que, entre outras coisas, o trabalho delas era resumia-se à complicada tarefa de analisar linha por linha e classificar os diferentes tipos de estrelas.
Entre as mulheres que realizaram este ou outros trabalhos estavam nomes que, embora, você nunca tenha ouvido falar, ficariam marcados para sempre na história da astronomia. Uma delas é Henrietta Swan Leavitt, deficiente auditiva que descobriu a lei utilizada até hoje para medir a distância das estrelas uma em relação à outra e, consequentemente, o tamanho do próprio universo. O cálculo é realizado levanto em conta a luminosidade do astro.
Outros nomes incluem Williamina Fleming que descobriu dezenas de planetas anões, nebulosas, etc; Antonia Maury, que deu importantes contribuições ao catálogo espectral estelar, e, Annie Jump Cannon, a líder da equipe, que catalogou mais de 250 mil estrelas em sua carreira.
Assim como Leavitt, Cannon também era deficiente auditiva (tornou-se após uma doença na juventude), o que, talvez, a tenha levado a desenvolver uma visão aguçada e um olhar mais apurado para as tais linhas escuras. Utilizando esse seu talento para os detalhes que os outros não podiam ver, Annie percebeu que as estrelas repetiam sempre um mesmo padrão e distribuíam-se entre 7 categorias principais. E por sua vez, dentro de cada categoria principal, subdividiam-se em outras 10 subcategorias numéricas. Tudo isso Annie aprendeu com memorização observando as cores, sem empregar nenhum método científico (embora formada em física e astronomia). Assim, ela focou em classificar as estrelas, mas não conseguiu ver todo o potencial que seu trabalho poderia oferecer. Isso ficou para uma outra pessoa. Saltemos até o ano de 1923, na Inglaterra, para dar prosseguimento à história. Lá as mulheres eram proibidas por lei de obterem um diploma avançado em ciência e o máximo que uma mulher podia alcançar profissionalmente se quisesse trabalhar com ciência era tornar-se uma professora primária. Ser cientista era uma profissão permitida somente aos homens. Mas who cares? Nem mesmo isso seria capaz de impedir Cecilia Payne, uma jovem de 20 e poucos anos de escrever seu nome nas estrelas, com o perdão do trocadilho. Após assistir uma palestra que mudou sua vida ela resolveu cruzar o oceano em direção aos Estados Unidos, para estudar. [RELATEDID]14821[/RELATEDID]Como você já deve ter imaginado ela foi parar na mesma Harvard das demais calculadoras, onde juntar-se-ia às demais cientistas e faria uma descoberta que mudaria o rumo da astrofísica para sempre. Logo que chegou Cecilia foi muito bem recebida e ficou encantada com a gentileza que ela e as demais mulheres podia compartilhar no ambiente científico. Annie, a líder das Calculadoras de Harvard, nesta época com mais de 60 anos e centenas de milhares de estrelas catalogadas, "adotou" a jovem britânica e começou a lhe passar todo o que podia sobre seus anos de trabalho com os espectros estelares. Como contrapartida a jovem cedeu todo seu conhecimento em física teórica e atômica para analisar os dados e determinar a composição química e o estado físico das estrelas. E aqui damos uma pausa para abrir um parêntese (... Lembra das tais linhas mais escuras que eram o critério de avaliação de Annie? Lembra daquela informação que eu disse para deixar em stand by? Pois bem, já que os espectros das estrelas formavam linhas escuras idênticas às linhas espectrais que podiam ser produzidas em laboratório, os cientistas concluíram que as estrelas eram formadas pelos mesmos materiais que dispomos aqui na Terra (e que foram utilizados nas simulações laboratoriais), e mais: praticamente na mesma proporção. Linhas mais proeminentes davam indícios de elementos mais pesados como cálcio e ferro (os elementos mais abundantes da Terra), etc. ... e fechamos o parêntese ) [RELATEDID]17417[/RELATEDID] Em 1924 Cecilia, que tinha um faro excelente para palestras, assistiria a outra fala que mudaria sua carreira e os rumos da própria astronomia, dessa vez de Henry Norris Russell, decano dos astrônomos americanos. Nessa fala ela viu o cientista dizer que de 40 a 45 dos elementos do espectro do sol podiam ser encontrados também na Terra, e, por isso, a composição dos 2 deveria se assemelhar. Por essa lógica, se aquecêssemos a crosta da Terra na mesma temperatura, o espectro emitido pelo nosso planeta assemelhar-se-ia ao da nossa estrela central. Esse foi o detalhe que faltava para virar uma chave em sua cabeça e ela percebesse uma coisa: aqueles padrões e subcategorias de classificação que Annie havia criado durante toda a sua carreira - mas não possuía uma explicação do que eram ou representavam, na verdade - era uma escala de temperatura. De lambuja ela percebeu que - aplicando a teoria de ionização -os padrões espectrais das estrelas eram um reflexo da quantidade de ionizações reagindo a diferentes temperaturas, e não a diferentes tipos de elementos. Cecilia calculou que sim, os elementos das estrelas e da Terra são os mesmos e estão presentes na mesma quantidade, como acreditava-se, porém, os elementos primordiais nas estrelas eram o hélio e hidrogênio (sendo este último na proporção 1 para 1 milhão aos demais elementos, o que o torna o elemento mais abundante do universo, e, faz de Cecilia a descobridora deste fato tão curioso quanto importante). Uma teoria arriscada que acabou virando sua tese de doutorado. Orgulhosa de seu feito, Cecília redigiu o trabalho e o enviou ao professor Russell para sua avaliação e comprovação. Mas para sua tristeza, a resposta não foi bem a que ela estava esperando. Russell não reagiu bem a uma teoria que contradizia tudo que se acreditava desde então e, como um dos astrônomos mais importantes de seu tempo, teve uma reação paterna de proteger o que ele conhecido e rejeitar o novo. O professor escreveu uma carta-resposta à jovem na qual explicava porque suas conclusões estavam erradas, chegando até a sentir pena da estudante pelos apontamentos falhos, como ele confidenciaria depois. Cecilia ficou arrasada e, embora contrariada, resolveu aceitar a derrota, já que um cientista tão renomado como Henry Russell não poderia estar errado. E assim, mesmo sabendo que seus resultados não poderiam estar errados, ela adicionou a seguinte frase ao final da tese: ... [a porcentagem de hélio e hidrogênio] são improvavelmente altas e quase certo que sejam irreais. E assim foi enviada à comissão a versão final da tese que a faria ser a primeira PHD mulher em astronomia por Harvard. [RELATEDID]14430[/RELATEDID]Cecília resolveu aceitar resignada um julgamento precipitado que demoraria 4 anos para ser corrigido. Na ocasião o mesmo Henry Russell reconheceria seu erro e devolveria a glória que seu o brilhantismo como astrônoma merecia. Hoje, sua tese "Atmosferas Estelares" é considerada por muitos como a tese de doutoramento mais brilhante da história da astronomia. Cerca de 20 anos depois ela seria a primeira professora associada de Harvard e a primeira mulher a chefiar um departamento. Cecília, Antonia, Annie, Henrietta e tantas outras antes delas, mesmo sem saber, estavam fazendo história. Aliás, Pickering também. Ele foi o primeiro a lotar uma sala com mulher fazendo cálculos, e deu bem certo, não? Embora a glória das descobertas quase sempre seja atribuída aos diretores dos centros de pesquisa, muitas mulheres estão por trás, e o reconhecimento, mesmo que tardio, é mais do que justo =) Para saber mais sobre as Calculadoras de Harvard e Cecilia Payne, assista ao 8º episódio da série Cosmos. Link da Netflix aqui,
As placas contendo os espectros estelares que eram analisadas com uma lupa pelas cientistas
Da esquerda à direita, de cima para baixo: Annie Cannon, Henrietta Leavitt, Williamina Fleming e Antonia Maury
Annie analisando as placas ao centro
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